“Peço ao Governo Soviético levar em consideração que não sou um político, mas um escritor": Bulgákov e sua obra-prima!



Imagine um romance em que o Diabo e seu séquito notável desembarcam na Rússia em pleno época do stalinismo. Imaginemos nesta mesma narrativa um romance sobre Pilatos e Jesus Cristo. Concebamos também nesta narrativa a elaboração de uma sátira mordaz ao projeto de perseguição stalinista aos escritores russos. Pense também encontrar na obra uma linda história de amor entre um escritor perseguido e sua amada, que o acompanhará por toda sua vida, aliás, existência marcada por turbulências. 

 Por fim, não precisa imaginar, todos esses ingredientes e muito mais vocês encontram em "O mestre e Margarida", do escritor russso Mikhail Bulgákov (1891-1940). Eis uma obra-prima da literatura, para os amantes dos grandes romances, sintam-se convidado a adentrar numa experiencia singular, que é a leitura desta narrativa. 



O romance foi elaborado entre 1928 e 1940, mas só foi publicado integralmente em 1973. Bulgákov não viu em vida seu grande projeto literário publicado. Ele que tinha tentado destruir os manuscritos com medo da perseguição do regime stalinista. Algo que foi impedido pela sua terceira esposa Ielena Serguêivna, uma mulher decisiva para que " O mestre e margarida" existisse.  

 A sua peça "Os dias de Turbim" era admirada por Stalin, o que lhe garantiu um emprego no teatro de arte de Moscou, todavia, Bulgákov sofreu durante toda sua carreira perseguição, o que lhe acarretou uma vida  de tribulações financeiras e problemas de saúde. 

 É neste contexto de tensões sociais e individuais que a obra foi elaborada. A narrativa divide-se em duas partes, a primeira  é marcada por duas dimensões separadas em capítulos distintos, uma  trata da chegada do diabo Woland e sua comitiva em Moscou à procura de uma mulher nativa  chamada Margarida para ser anfitriã de um grande baile e a outra e uma história sobre Pôncios Pilates e Jesus Cristo, que lá na frente descobrimos que se trata de capítulos do romance escrito pelo Mestre.

 Já na segunda parte temos o encontro de Woland com Margarida, as aventuras da sinistra figura e seu séquito nos espaços artísticos e literários de Moscou; o acordo dela em participar do baile desde que redima o Mestre, que se encontrava no hospício, perseguido pela crítica literária, além disto ele tinha queimado os manuscritos de sua recente obra literária ( alusão que pode ser lida ao próprio livro e autor)

Temos um romance com várias camadas e dimensões, uma carnavalização que se harmoniza na maneira cativante como é contada. Visualizamos aspectos do mundo social e literário da época do stalinismo e é uma sátira ao projeto coletivo preconizado pelo líder da URSS, como na bela cena do dinheiro caindo numa peça apresentada por Woland e sua companhia.

Também temos acesso a uma atmosfera angustiante de um escritor perseguido pelo ordenamento estatal e de seus porta-vozes dos meios intelectuais. Ao tempo que é contado uma linda estória de amor entre Margarida e o Mestre, nisto a primeira topa um acordo com o demo, um pacto fausto, em nome do seu amado. 

Neste sentido, ficamos entendendo melhor a epígrafe do livro:  "Pois bem, que és então? - Sou uma parte da energia que sempre o Mal pretende e que o Bem sempre cria " ( Goethe, Fausto), uma  vez que é só com a presença de Woland que o mestre encontrará  sua tranquilidade, além de conseguir recuperar seus manuscritos/romance do fogo, como bem disse o Diabo: "Manuscritos não ardem".

Mas na minha leitura, cativou-me principalmente duas questões, a saber: primeiramente: as aventuras  proporcionado por seu séquito composto pela vampira Hella, um homem ruivo chamado Azazelo, o desengonçado Koroviév e o principal, um gato falante e canastrão, que anda e conversa como humano, chamado Behemoth.  Esta trupe vira a Moscou de ponta a cabeça, que figuras sinistras e encantadoras. 
   
A segunda foi o capítulo  que apresenta Jesus a Pôncio Pilates. Uma passagem magistral em que , na minha leitura, vejo como uma bela parábola crítica ao autoritarismo de Stalin. Isto tocou-me muito, vez por outra, nas nossas experiências de vida, defrontamo-nos  com opressões de pessoas que ocupam momentaneamente o poder achando que tal poderio é para sempre. Isto muitas vezes acontecem  no nosso ambiente de  trabalho e no mundo da política. Daí o meu encantamento por esse diálogo entre Pilatos e Yeshua (Jesus), em que o segundo revela o que conversou com Judas:  

Todo poder é uma violência contra as pessoas, e [...]  chegará o tempo em que não haverá  poder nem dos Césares, nem qualquer outro. O homem chegará ao reino da verdade e da justiça, onde não será necessário poder algum.
                                                                                                                    
                                                                                                                    ( BULGAKOV, 2017, p. 37)
   
Pois bem,  em tempos de quarentena ou não, vale apena reservar parte do seu tempo leitor/a para se encantar com uma experiência singular e inesquecível da literatura! Ainda bem que Ielena Serguêivna, a margarida na vida real de Bulgákov, demonstrou que o Diabo estava certo, pois manuscritos/romance não ardem, mesmo sob o fogo intenso do stalinismo. 


Fonte: BULGAKOV, Mikhail. O Mestre e Margarida. trad. de Irineu Franco Perpetuo. São Paulo: Editora 34, 2017. 

Observação: o titulo do texto foi retirado do ensaio: "realismo socialista e suas (in)definições", de Homero Freitas de Andrade. Trata-se de um especialista em literatura russa e em Bulgákov, tal texto encontra-se na disponível na internet. 









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