Astúcia narrativa e humor ácido no romance "Enclausurado", de Ian Mcewan!



        Machado de Assis estabeleceu uma revolução formal no livro "Memórias Póstumas de Brás Cubas" (1881), tornando-se um clássico da nossa literatura.  A obra inicia com uma curiosa dedicatória "Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver com saudosa lembrança estas memórias póstumas". compreendemos tal passagem por sabermos que o narrador é um autor defunto ou um defunto autor. 
     A voz narrativa coloca suas condições de espaço ao leitor, despertando curiosidade e perplexidade.  No decorre da leitura adentra-se na estória de corpo alma, uma vez que o texto é  tão magistralmente bem escrito, assim como o encadeamento dos acontecimentos, que tomam a atenção e acredita-se, emociona-se, com as desventuras de Brás Cubas. 
          Recentemente o escritor inglês Ian Mcewan publicou o saboroso romance "Enclausurado". Não encontro outro adjetivo para sintetizar tal obra.  O autor consegue um feito só realizado pelos escritores que são mestres na arte de contar/narrar ficção. Assim como aquelas pessoas que contam causos fantásticas que de  tão bem contadas, acabamos por acreditar nelas. 
       Mcewan inicia a obra de maneira surpreendente, uma vez que a narrativa se dá em primeira pessoa e é realizada por um feto que está preparando-se para vir ao mundo. É dos olhos e das sensações do corpo de sua mãe Trudy, que o narrador vai observar as pessoas e o mundo que o circunda. Ela tem um caso extraconjugal e, junto com o seu amante, planeja o assassinato de John, pai do feto-narrador. É nesta dimensão tensa que se alicerça o eixo central no romance.
         Mas a maestria se dá no narrador, que é irônico, engraçado, arguto e crítico, diante das relações afetivas, principalmente em torno do casamento. Mas  existem uma porção de passagens hilárias, além de reflexões filosóficas elaborada pelo feto-autor. Entre tantas cenas jocosas no romance, a do amante  tendo relação sexual com sua mãe, e as sensações descritas de ter um pênis do rival de seu pai próxima a ele, é uma das cenas mais engraçada que li na literatura. Assim como suas angústias em pensar que pode nasce na cadeia, caso Trudy leve a cabo o plano de matar seu pai. Daí a chave para compreender melhor o titulo da obra, que pode ser lido pelo fato do narrador está preso na barriga da mãe, assim como encalacrado pela situação belicosa posta pelos seus pais.
           Ian Mcewan  demonstra refinada  capacidade narrativa, mostra-se também um autor arguto na maneira como conduz os momentos de tensões e de desfechos, assim como expõe a beleza do texto, enxuto e  marcado pela coerência no ritmo contínuo e no tom de imprevisibilidade. Não é à toa que tal escritor é um dos mais conhecidos na atualidade.




                Ao sair da leitura de 'Enclausurado" , aliás , saborosa, por sinal, lembrei de  imediato de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Fiquei refletindo sobre a magia da arte literária, da verdade da mentira, no dizer de Mário Vargas Llosa. Sobre a capacidade de empatia que os grandes escritores elaboram, de prender-nos em suas estórias ficcionais, algo extensivo as outras artes, mesmo sabendo da dimensão fantasiosa , ficamos emocionados, pensativos, encantados. Encerramos à leitura repleto de reflexões que alteram nossa visão de mundo e das pessoas.  
                   Neste sentido, lembro dos apontamentos postos pelo crítico literário James Wood sobre a questão da crença no processo de leitura de obras literárias, uma  vez que somos nós, leitores, que validamos ou não  tais narrativas.  Como bem coloca Wood  a nossa crença na ficção é metafórica, semelhante à verdadeira crença. O que não é menos impactante do que os dados concretos da realidade.
          Por fim, não deixem de ler este romance singular, esta experiência narrativa astuta. Enclausurado tem o sabor parecido com o do conhecido romance brasileiro, este último que foi escrito com as penas da galhofa e as tintas da melancolia. Ian Mcewan  revela  o  sabor da arte mais próxima da vida, que também é vida, pois carregamos em nós suas imagens, pois a literatura ajuda-nos a melhor refletir nossa condição humana, de ser e de estar no mundo. 




Passagens:  "Quando o amor morre e um casamento se desfaz, a primeira vítima é a lembrança sincera, a recordação decente e imparcial do passado. Inconveniente demais, prejudicial demais ao presente. É o fantasma da felicidade no passado que comparece à festa do fracasso e da desolação"   (p. 75)
                  " Agora uma farpa, uma verdade pontiaguda do dia de ontem perfura o tecido delicado do sono" (p.161)





Fontes:  MCEWAN, Ian. Enclausurado. Trad. de Jorio Dauster . São Paulo: Companhia das letras, 2016.
              WOOD, James. A coisa mais próxima da vida. Trad. de Célia Euvaldo. SESI/SP, 2017.
              ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo:  Ática, 1996.
              LLOSA, Mário Vargas Llosa. A verdade das mentiras. 3º ed. Trad de Cordelia Magalhães. São Paulo: Aux, 2004.









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