A "homoafetividade" em debate!
Vivemos em uma época
marcada por mudanças e agitações de várias ordens, acompanhamos a ascensão de
movimentos obscurantistas, de líderes de ultradireitas populistas, de ataques
ao espaço da ciência e da reflexão, entre outras tantas. O movimento “terraplanista”
(que defende a tese de que o planeta Terra é plano) e as fake News (notícias
falsas divulgadas como verdadeiras) são dois exemplos desse contexto. Tais
perspectivas têm na “pós-verdade” sua melhor síntese, já que nessa lógica a
verdade não tem que ser creditada a verificação dos dados, dos textos, das
provas e dos eventos, mas sim na crença posta nela. Nesta esteira, pode-se
inverter a máxima cartesiana “penso, logo existo!” por “acredito, logo estou
com a verdade”.
Nas últimas eleições presidenciais no Brasil, o
atual presidente acusou os governos do Partido dos Trabalhadores de terem
distribuído “Kits Gay[1]” nas escolas públicas. Tal
ataque “foi um dos trunfos de sua campanha junto a setores reacionários da
população brasileira, em sua maioria adeptos de religiões cristãs. Mesmo sem nenhuma
prova concreta e/ou nenhuma comprovação empírica de tal material e de seu uso,
a acusação foi propagada e reproduzida nas redes sociais, através de mensagens
de WhatsApp, e aceita como verdade por muitos.
Tais questões adensam a
pertinência do texto: “Homoafetividade: discursos e práticas
contemporâneas, apropriações helênicas”, da historiadora Viviane Kate Pereira
Ramos. A autora escolhe um tema espinhoso para refletir os usos e os conflitos
em torno das leituras de práticas e textos da Grécia e da Roma Antiga. Nisto
demonstra o quanto é importante percebermos que existem disputas em torno do
processo de interpretação da história, algo que lembra uma imagem do romance
distópico “1984”, de George Orwell[2] (2009), na qual se afirma que “quem controla o passado controla o futuro, quem controla o presente,
controla o passado”.
O texto em questão
trata-se de uma pesquisa de monografia de bacharelado em História,
defendida em 2013. A narrativa divide-se
em duas partes, a saber: a primeira aborda a temática da sexualidade na história
e de como os antigos encaravam essas questões a partir dos valores do seu tempo;
a segunda indica as apropriações de práticas e textos da Antiguidade Helênica e
dos romanos por parte de leituras enviesadas pelos preceitos morais cristãos e
por valores de militância do ativismo LGBT
(Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros).
Chama-nos a atenção a
maturidade do texto, tendo em vista que as citações não se sobrepõem aos
argumentos e observações elaborados pela própria autora, encontrando-se
localizados durante toda a narrativa. Viviane apresenta uma série de reflexões
sobre a Homoafetividade, até hoje, compreendida como “Homossexulidade” no
imaginário da maioria da população brasileira.
Para tanto, a
historiadora parte de questionamentos em torno de algumas premissas advindas de
interpretações indicadas por duas perspectivas ideológicas. A primeira é de
autores vinculados a tradição cristão religiosa que condenam as práticas
sexuais entre pessoas do mesmo sexo; e a segunda de autores e ativistas LGBT
que defendem o direito às práticas sexuais e às relações amorosas/afetivas
entre pessoas do mesmo gênero sexual.
A autora demonstra, a
partir de especialistas em História Antiga e da leitura atenta de textos
clássicos da filosofia, o quanto as apropriações, construídas no tempo presente
por autores cristãos e autores vinculados a pauta LGBT, são pautadas em
anacronismos, inadequações e transposições simplistas de informações e imagens
do passado, afrontando, assim, a justa
medida de uma leitura hermenêutica de textos e do contexto do período histórico
estudado.
Neste processo a autora
chama a atenção para os cuidados de não lermos as práticas do passado a partir
do campo de valores do tempo presente, sem fazermos as mediações e os distanciamentos
necessários, tendo em vista que o trabalho de um pesquisador, que utiliza
informações de sociedades existentes em tempos idos, deve ser regulado na
criticidade em torno das fontes históricas e da compreensão dos valores sociais
e culturais existentes nas sociedades escolhidas como recorte de
pesquisa, tendo em vista que não se deve transpor o campo de sentido do
presente para julgar o passado.
No caso em questão é
estudada a temática da sexualidade e das relações homoafetivas. Pelo lado de
estudiosos cristãos, as práticas sexuais de indivíduos da Grécia e de Roma
provam a promiscuidade dos antigos, no qual a Bíblia e os preceitos do
cristianismo surgiram no processo da História para purificar as relações
sexuais e adequá-las à relação correta que é a Heterossexual, de homem com
mulher. Por outro lado, alguns autores ativistas LGBT indicam as práticas
homoafetivas na Grécia e na Roma antiga como prova da diversidade das experiências
sexuais na História e de como são legítimas as diversas formas de vivenciar a
sexualidade.
O grande mérito do texto em destaque é o fato
de a pesquisadora Viviane Kate trazer a importância do compromisso com os
rigores das afirmações contidas numa pesquisa histórica, da necessidade do
processo de compreensão dos valores sociais e culturais envoltos no objeto de
pesquisa. Nisso, ela traça um diálogo com as ideias de Roger Chartier[3] (1990) em torno dos
processos de espaço de veiculação do texto, do lugar dele e do leitor, assim
como as necessárias ponderações de conexões em volta dessas facetas no processo
de leitura de texto/contexto.
Esta
obra faz-nos lembrar os ensinamentos do historiador Marc Bloch[4] (2001) quando este indicou
que “a História é a ciência do homem no tempo” e que a narrativa do passado tem
a textura dos embates de interesses do tempo presente. Estamos passando por um
período que apresenta um aumento considerável de casos de homofobia e de outros
gestos violentos contra seres humanos que vivenciam sua plenitude afetiva e
sexual com pessoas do mesmo gênero ou com mais de um. Período este no qual a temática
da sexualidade e sua compreensão são combatidos de maneira veemente por grupos
sociais que distorcem a questão, como é posto nos debates em torno da
“ideologia de gênero”[5]. Torna-se, assim, um
imperativo indeclinável a melhor compreensão do passado para enfrentar essa
onda de intolerância, obscurantismo e discriminação presente atualmente na
nossa sociedade e nas nossas sociabilidades.
Marc Bloch (2001) também
defende que a ignorância em torno do passado e da história não apenas interfere
na melhor percepção do tempo presente, bem como compromete a própria ação. No
caso atual, na urgência de gestos e políticas de enfrentamento em prol de uma
sociedade mais justa, inclusiva, solidária, sem discriminação sexual, social e
racial. Desta maneira, a leitura atenta
ao texto da Viviane Kate é um bom exercício em torno dessa direção.
Fontes:
[1] Como visualização inicial, vide: https://congressoemfoco.uol.com.br/educacao/kit-gay-nunca-foi-distribuido-em-escola-veja-verdades-e-mentiras/. Acesso em: 17 jan. 2020.
[2] ORWELL, George. 1984.
Tradução: Alexandre Hubner e Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras,
2009.
[3] CHARTIER, Roger. A História
cultural: entre práticas e representações. Tradução: Maria Manuela
Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.
[4] BLOCH, Marc. Apologia da
História, ou, O ofício do historiador. Tradução: André Telles. Rio de
Janeiro: Zahar, 2001.
[5] Para uma leitura inicial sobre o
tema, recomenda-se a leitura do artigo: “A ‘ideologia de gênero’ existe, mas
não é aquilo que você pensa”, de Rogério Diniz Junqueira. In: MARIANO,
Alessandro et al. Educação
contra a barbárie: por escolas democráticas e pela liberdade de ensinar.
São Paulo: Boitempo, 2019. p. 135-140.
RAMOS, Viviane Kate Pereira. Homoafetividade: discursos e práticas contemporâneas, apropriações helênicas. Monografia de História. Orientação: Marinalva Vilar de Lima. Universidade Federal de Campina Grande, 2013.
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